Campanha da Fraternidade 2026: garantir a moradia é compromisso humano que traz dignidade para a vida das pessoas
O tema “Fraternidade e Moradia – Ele veio morar entre nós”, mote principal da CF 2026, inspirou a 13ª edição da Revista Casa Comum, que pautou ‘Moradia: porta de entrada de todos os direitos’.
“São muitas as situações em que ter uma casa vai trazer a dignidade para a vida das pessoas.”
É com essa reflexão que Padre Jean Poul Hansen, assessor do Setor de Campanhas da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reforça o que muitos especialistas, estudiosos e ativistas da habitação, da arquitetura das cidades e do urbanismo dizem ao defender a moradia como porta de entrada de todos os direitos.
Essa constatação, inclusive, é a chamada central da 13ª edição da Revista Casa Comum, inspirada pela Campanha da Fraternidade 2026 (CF), que traz o fio condutor “Fraternidade e Moradia – Ele veio morar entre nós (Jo 1,14)”.
Com o objetivo principal de “promover, a partir da Boa Nova do Reino de Deus e em espírito de conversão quaresmal, a moradia digna como prioridade e direito, junto aos demais bens e serviços essenciais a toda a população”, a Campanha da Fraternidade 2026 busca endereçar um dos maiores e mais complexos desafios atuais da sociedade brasileira: a garantia do direito à moradia para todas as pessoas, sem distinção, exclusão ou discriminação.
De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 16.390.815 pessoas – 8,1% da população brasileira – viviam em 12.348 favelas e comunidades urbanas. Se comparado com o Censo de 2010, trata-se de um aumento de quase cinco milhões de pessoas residentes nesses espaços, que também praticamente dobraram em quantidade nesse período.
Diante desse cenário, Padre Jean Poul reforça o compromisso da CF em sempre trazer para o centro de debate temas urgentes que, muitas vezes, são esquecidos ou pouco abordados na sociedade, como é o caso da moradia.
“Nós convivemos com a população em situação de rua, com um número sem fim de favelas, cortiços e assentamentos, mas achamos que está tudo bem e que todo mundo tem vida digna e não tem. A moradia é um direito humano fundamental, não é um adereço para a nossa vida. Além de estar garantida nos direitos humanos da ONU [Organização das Nações Unidas] e na nossa Constituição Federal, a moradia é um direito divino. E existem muitas expressões do magistério da igreja que reforçam que é uma necessidade humana, uma exigência para a realização integral do ser humano e até mesmo para a vigência da sua dimensão religiosa.”
O texto base da CF 2026, contempla seis objetivos específicos desta 63ª edição da Campanha. São eles:
- Analisar a realidade da moradia precária, admitida como normal e que culpabiliza os pobres e segrega milhões de pessoas no Brasil.
- Identificar omissões do poder público e da sociedade civil frente à universalização dos direitos à moradia e à cidade, bem como iniciativas pastorais, governamentais e da organização popular que promovem a moradia.
- Conscientizar, a partir da Palavra de Deus e do Ensino Social da Igreja, sobre a necessidade sagrada de teto, terra e trabalho para todos.
- Corrigir a compreensão da moradia como mercadoria, objeto de especulação ou mérito individual.
- Fortalecer a presença eclesial e o compromisso sociotransformador junto aos mais pobres, caminhando com os movimentos e organizações populares que promovem a moradia.
- Empenhar-se para efetivar leis e viabilizar políticas públicas de moradia em todas as esferas sociais e políticas.
A importância de pautar a moradia
Colocar a moradia no centro do debate é fundamental, porém, o desafio nunca terá uma solução a curto prazo. É o que afirma Elton Bozzetto, presidente do Sindicato dos Empregados em Entidades Culturais, Recreativas, de Assistência Social, de Orientação e Formação Profissional no Estado do Rio Grande do Sul (Senalba-RS), coordenador da Dimensão de Justiça, Caridade e Paz da Cáritas Arquidiocesana de Porto Alegre, ex-coordenador da Organização das Cooperativas do estado do Rio Grande do Sul (Ocergs) na área de cooperativismo habitacional e ex-presidente do Conselho Municipal de Habitação de Porto Alegre.
Elton fala a respeito de três compreensões sobre assegurar o direito à moradia para todas as pessoas: o aspecto legal, a concepção humanística e a fé cristã. “Eu estou falando, ao mesmo tempo, da referência constitucional, mas também da obrigação humana de cuidarmos da pessoa em sua dignidade e em sua vida plena. Por conta disso, estamos falando da importância que tem esta Campanha da Fraternidade de 2026, porque trata-se do sagrado direito humano de moradia. Estamos tratando do primeiro grande direito a ser assegurado, junto com a vida.”
Cooperativismo habitacional: alternativa para o déficit de moradias
Com ampla experiência no cooperativismo habitacional, Elton Bozzetto defende essa como uma alternativa para a produção de moradias de interesse social. Em uma retomada histórica, reflete sobre a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), e um processo que chama de ‘bancarização da produção habitacional’ no país, com financiamentos a juros elevados, inviabilizando a possibilidade da casa para milhares de famílias.
“O dinheiro para moradia é extremamente caro em nosso país. E aí nós afrontamos a própria Constituição Federal, que determina que [a moradia] é cláusula pétrea, um direito fundamental. Dos necessitados de moradia hoje em nosso país que estão nessa composição do déficit [habitacional], quem tem condições de assumir um juro bancário do nível que está agora? Quer dizer, pela bancarização do direito à moradia, nós inviabilizamos o atendimento desse direito”, reflete.
Para o coordenador, uma eventual diminuição de juros para cooperativas habitacionais traria benefícios em diferentes frentes. “Hoje, o principal gerador de trabalho e emprego no Brasil é a construção civil. Se nós viabilizarmos um recurso barato para as cooperativas habitacionais, além de garantirmos habitação, garantimos emprego e formação profissional.”
Elton também comenta sobre a situação de perda de milhares de moradias em razão das fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul nos últimos anos, especialmente e com maior força em 2024. Para ele, é necessário trocar a palavra reconstrução – “fazer a mesma coisa no mesmo lugar” – pela palavra regeneração.
“Regenerar significa você devolver a condição da origem, que foi invadida pela humanidade, por nós aqui no Rio Grande do Sul particularmente, nos vales, na região metropolitana, nas cidades, um lugar que nós invadimos e transformamos de acordo com o nosso propósito e o nosso interesse. Ao fazer isso, estamos contrariando aquilo que é a origem, que é a gênese de todo o espaço ambiental. Todas essas áreas que foram alagadas e destruídas com a tragédia do ano passado, não estamos vendo nenhuma iniciativa de mudar a forma como ocupamos o ambiente natural. Ou seja, nós vamos padecer novamente em outras circunstâncias semelhantes.”
Para ele, é fundamental que existam discussões sobre a forma como os seres humanos ocupam o ambiente natural e o que será feito e de que forma para devolver à natureza tudo aquilo que foi invadido, ocupado, destruído ou alterado.
Além disso, outro aspecto importante é produzir reflexões sobre a própria forma de ocupar os espaços, o que invariavelmente se relaciona à moradia. “A gente ornamenta nossas áreas dos condomínios nas cidades com árvores frondosas. Mas por que não criamos áreas para a produção de hortifrutigranjeiros, com plantação de verduras, legumes e fruteiras? Por que não criar no condomínio espaços em que nós criamos o alimento sadio, preservando a terra, utilizando a fertilização natural sem os adubos formulados e químicos?”, reflete.
A relação entre moradia e outros direitos
Um dos pontos centrais abordados na 13ª edição da Revista Casa Comum é o fato de que a moradia se relaciona diretamente com inúmeros outros direitos e temáticas da vida. É o caso, por exemplo, da alimentação. Pessoas que não têm uma casa, ou que moram precariamente, têm mais chances de não ter uma alimentação saudável e balanceada.
Outro aspecto importante é a relação com trabalho. Em muitos casos, pessoas alteram seus endereços para que possam ter maiores chances de conseguir uma vaga de emprego. Padre Jean Poul traz outros aspectos relacionados ao mundo do trabalho: “A construção civil é uma grande geradora de vagas de emprego. Mas, por outro lado, curiosamente, a casa é uma das coisas mais difíceis que o brasileiro adquire com o seu trabalho. O trabalhador assalariado não tem condições de adquirir a casa própria com o seu salário. Sinal de que o seu trabalho não responde às suas demandas e necessidades”, reflete.
Educação e ecologia são outras temáticas diretamente ligadas à habitação. Ter uma casa com um ambiente para estudar é fundamental para o pleno desenvolvimento de crianças e jovens em idade escolar, por exemplo. Ao mesmo tempo, a construção de casas e moradias de forma precária em locais impróprios, como em encostas, não só prejudica o meio ambiente como coloca em risco a vida dessas famílias.
Moradia e expressão de fé
Outro aspecto fundamental da moradia, que será tema de interesse da CF 2026, será a relação entre a casa e a expressão de fé de cada pessoa. Padre Jean Poul explica que mais do que ter um abrigo, a casa representa a possibilidade de que cada pessoa desenvolva e trabalhe sua fé.
“Morando na rua, peregrinando de marquise em marquise, é difícil construir a própria interioridade. Para eu construir a minha casa interior, eu preciso desse referencial da casa exterior. A minha relação com Deus precisa dessa dimensão da habitação. Toda a insegurança que a falta de habitação resulta num elemento dificultador para minha relação com Deus. Por isso, [a casa] é fundamental na dimensão religiosa.”
Além disso, o próprio lema da Campanha também traz outro significado da fé e moradia.
“Jesus era sem-teto ao nascer. Depois, ao longo da Sua missão, Ele diz a respeito de Si mesmo: ‘O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça’. Ele assume na Sua vida adulta que é um sem-teto. E é isso que nós queremos dizer com ‘Ele veio morar entre nós’. Deus assumiu os riscos da nossa humanidade para que nos comprometêssemos com a transformação dessa vida humana em vida em abundância, em vida em plenitude, que é o que Ele veio trazer. Mas essa plenitude da vida é dom e compromisso. Ele traz, mas nós temos que nos comprometer a lutar e transformar para construí-la na nossa sociedade.”
A Revista Casa Comum encerra um ciclo
A 13ª edição da Revista Casa Comum é um número especial, pois marca a parceria, pelo segundo ano consecutivo, com a Campanha da Fraternidade. E, ainda, encerra um ciclo: a 13ª edição é o último número da revista como iniciativa do Sefras – Ação Social Franciscana.
Fábio Paes, coordenador da Revista, celebra o projeto, que nasceu do sonho coletivo e compartilhado de responder, a partir da perspectiva franciscana, à urgente demanda por posicionamento e formação no campo da justiça socioambiental no Brasil.
“Criada no âmbito do SEFRAS – Ação Social Franciscana, a revista foi, desde o início, um espaço de reflexão, diálogo e mobilização, construído com escuta atenta e compromisso com as lutas dos povos e da terra. Hoje, com entusiasmo e esperança, celebramos um novo ciclo: a Casa Comum deixa de ser uma iniciativa vinculada exclusivamente ao SEFRAS e se torna uma estratégia mais ampla de articulação e mobilização de grupos, redes e iniciativas que atuam na defesa da justiça socioambiental em todo o país. Essa transição é, ao mesmo tempo, um reconhecimento da potência que construímos juntos até aqui e um convite para que mais vozes, territórios e experiências se somem a essa caminhada, que segue firme e viva, tendo como base a perspectiva franciscana de cuidado com a vida, com a Casa Comum e com os mais vulneráveis. A todas e todos que contribuíram para tornar este projeto possível, nossa profunda gratidão. Seguimos com fé, coragem e alegria, cultivando a Casa Comum como espaço de encontro, resistência e esperança.”
Fonte: https://revistacasacomum.com.br/





